Wingene

José Eugênio

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Reflexões

Do barulho ao canto

As gotas da chuva recente ainda pingam, o cheiro inconfundível de terra molhada povoa meu olfato, disparando memórias de outras chuvas na roça. Mesmo na vida corrida da cidade, o recanto do meu jardim exala o mesmo aroma que me transporta para o campo. Uma trilha de formigas corre o chão úmido com a urgência própria de operárias. Lembro da luta de milhares de trabalhadores que, na cidade grande, percorrem trilhas criadas pelos automóveis em suas motos. Eles arriscam a vida nesses veículos, qualquer acidente pode ser fatal.

A chuva piora o trânsito, tortura que afeta a todos, mas que é mais cruel com os menos afortunados. Nesse lugar, os mais pobres costumam morar longe, levando horas em dois ou três ônibus, talvez em um metrô, para chegar e voltar do trabalho. Um sofrimento a mais para aqueles que não desfrutam dos privilégios de poucos. A partilha da renda que se gera se distribui como uma pirâmide onde os trabalhadores, na base, ganham muito menos que os privilegiados empresários e investidores. Por esse motivo, é comum ver tantos motoqueiros.

Em meio ao barulho de uma construção, um papa-moscas canta, um pássaro pouco conhecido que se parece com o bem-te-vi. Seu canto se mistura com o de um periquito que, aos poucos, se sobressai por ser mais forte e marcante. As pessoas são como aves, as mais comuns se diluem na multidão, enquanto algumas sobressaem no turbulento vai e vem rotineiro.

Aqueles diferenciados, ao contrário das aves, no entanto, marcam sua presença indelével na história da humanidade. Existem uns que serão lembrados pelo que construíram e outros pelo mal que causaram. Lamentavelmente, os maus permanecem na memória por mais tempo. A revolta pelo horror de seus atos marca como uma ferida o corpo da história.

O verdadeiro bem-te-vi canta, o barulho da construção para. Facilmente diferenciamos o ruído do que é música, as feridas do que é são. Bondade e maldade, por outro lado, podem depender da interpretação que se dá aos fatos. Informações e desinformações se combinam, tornando as feridas invisíveis para alguns.

Com a grande rede, qualquer um pode ser um “influenciador”, utilizando o seu modus vivendi para um bombardeio de informações, sem garantir qualidade. São poucos os que atingem grandes públicos, ditando rumos. Divulgando o bem e o mal, muitas vezes sem se dar conta do poder que a Internet lhes dá. A força da maldade sendo amplificada pelo interesse contínuo na crueldade humana.

Quando o mundo for menos desigual, a vida das formiguinhas se transformará. Com mais dignidade, a busca por um futuro melhor deixará de ser pessoal, se tornando coletiva. Muitos se unirão na luta por fazer a diferença. O bem superará o desejo de propagar o mal. Isso garantirá um futuro musical, onde o canto prevaleça sobre o barulho.

(25/08/25)

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