Alvorecer
Marcos acorda com o som programado de seu moderno aparelho, cada dia menos usado para o que nasceu seu avô, telefone. Com a agilidade que o torpor do sono permite, prepara-se para o exercício. Seu treinador avisa da sua iminente chegada. Pão com queijo, leite puro e ele está pronto. No subsolo, encontra Ivan esperando para orientá-lo naquela hora de esforço. Com a precisão suíça, já havia buscado as chaves e preparado a academia. Para Marcos, a saudável e monótona obrigação transmuta-se em um alegre momento com a agradável e descomprometida conversa que trava com seu tutor. Que, apesar de 20 anos mais novo, tem sempre um assunto interessante.
Terminado o treino, tornando ao seu lar, encontra Sílvia. Conversam sobre a série que ela acompanha, assistindo até no ônibus. Aproveita para lembrá-la:—não vá esquecer de colocar os fones para carregar. Ela concorda com um gesto e diz — Sr. Marcos, precisa comprar ovos para fazer um bolo de cenoura. Ele pontua — veja se precisa de mais alguma coisa. Sílvia olha a geladeira pensativa. — Podia comprar uma linguiça calabresa, assim posso preparar uns pães para o jantar. Marcos concorda com um gesto, já pensando no sabor que Sílvia vai lhe brindar com sua sábia culinária.
Antes de sair, Marcos se envolve no ritual matinal, pesa os grãos que moendo manualmente, enquanto aquece a água. Em seguida, com um papel triangular, extrai o saboroso líquido. A xícara exala o perfume caramelo escuro. Senta-se e degusta calmamente a bebida, com pausas serenas, apreciando o berço de cada gole, circundado pelo sossego da sala vazia.
Na rua, o gosto amendoado ainda presente se mistura com o aroma das cores das árvores e o cheiro do movimento das rodas. O calor do céu azul invade o seu ser. Ágeis vassouras povoam o ar com o som de seu suor. Cercando a sujeira, espantam penas que caminham ao redor. Na esquina, tesouras trabalham nos cabelos, no corte habilidoso dos fios rejuvenescem os assíduos clientes. Ele chega ao destino, a porta automática se abre.
No luxuoso mercado, o frio artificial invade seu corpo aquecido. Seguindo a trilha de variados e coloridos produtos, Marcos se dirige à casa dos embutidos escolhendo a calabresa, atento aos detalhes da embalagem. Sem se distrair com o apelo comercial das gôndolas brilhantes, busca os ovos e caminha até a saída. O seu relógio fecha a conta com a moderna naturalidade da vida digital, enquanto seu olhar agradece à simpatia da atendente.
Retorna tranquilo. O colorido das flores pinta a natureza anunciando a nova estação, um contraste com os imundos pedintes que dormem no chão: a desigualdade saltando aos olhos. Ele se comove com a cena, um ato desprezível da peça encenada pela invisível ganância. A primavera se aproxima, os coitados sem teto sobreviveram ao inverno. Pensa em como seria um mundo se todos tivessem um digno lar.
Chegando ao seu confortável destino, esvaziava a sacola cuidadosamente, quando Sílvia o interrompe sem jeito, dizendo: — Esqueci de dizer que não tinha farinha. Marcos sorri e pensa, nova trilha às prateleiras, novos detalhes da vida a seguir.
Sílvia começa seu dia antes do alvorecer, se apronta rapidamente, passando café para o marido e preparando a mesa. Antes que ele acorde, já está no local onde sempre espera o ônibus. Em poucos minutos, o farol do coletivo rasga a escuridão da rua deserta. Este é somente o primeiro, uma viagem de 40 minutos até o terminal que centraliza milhares de trabalhadores buscando seu destino. Passa o tempo vendo sua série no modesto celular. Seus fones abafam o burburinho das almas calejadas. Olhos e ouvidos atentos seguem a série romântica, o tempo corre rapidamente.
No terminal, ela guarda os aparelhos, ciente da dificuldade de um desejado assento. Após 20 minutos na fila. Uma vaga para uma longa viagem de pé. Nos demorados 50 minutos, a monótona paisagem urbana desfila sem graça e barulhenta. Enfim, chega ao centro da cidade, outra fila para o veículo que seguirá até as proximidades do apartamento de Marcos.
Caninha alguns quarteirões e chega ao prédio. Na cozinha, a chaleira intocada esperava seu dono. Que bom! Conseguiu chegar antes de seu patrão terminar o treino matinal. Ajeitava a mesa do café quando o Senhor Marcos abre a porta da sala. Ele faz perguntas sobre a série que ela acompanha, dizendo que viu alguns episódios. Ela lembra Marcos que precisa comprar ovos para fazer um bolo de cenoura. Ele pergunta se não precisa de mais alguma coisa. Vasculhando a geladeira, lembra da linguiça calabresa para os pães do jantar.
O senhor Marcos começa o preparo do seu café especial, como quem prepara uma receita exclusiva. Sílvia sente o aroma, notando que o preparo do patrão havia excedido a dose que ele servira. Sabendo da resposta, pergunta: — Posso experimentar? Marcos responde: — Claro, Sílvia, está mesmo uma delícia. Ela reserva o café satisfeita e espera o patrão terminar, antes de saborear uma xícara, pensando: o café dele é realmente gostoso, nem precisa de açúcar.
Depois da pausa para o café, ela começa os preparativos para o almoço. Já havia uma carne descongelada, pensa que precisa fazer algo diferente. Separa uns tomates para rechear com queijo e orégano. Marcos sempre elogia seus tomates gratinados. Pica também umas batatas para cozinhar. Enquanto cozinha o feijão, prepara o arroz e a carne. Sentindo o prazer que a arte da culinária lhe traz.
Quase tudo pronto para o almoço, pensa em preparar um bolo para assar à tarde. Procura a farinha na gaveta de baixo e não encontra. Na escada, olha as prateleiras de cima. Nada. O forno, ainda quente, esperava a massa, inexistente na falta do ingrediente principal. Será que o senhor Marcos poderá voltar ao supermercado?
(19/09/25 a 23/09/25).