Wingene

José Eugênio

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Crônicas 3

A herança real

Meu veículo corta o dédalo de ruas e avenidas da cidade. Como de costume, conduzimos o Sr. Carlos e Dona Eunice em direção à fundação Raumsólica de Logosofia. Eu e Clara temos uma amizade mágica com esses dois. Morar em uma cidade nova, longe de parentes e amigos, é um desafio que se suaviza convivendo com esse exemplar casal de idosos. No caminho, comento: — Tenho que abrir uma empresa. — Já sabe que nome vai dar? — Questiona o Sr. Carlos, do banco de trás. — Wingene — O que significa? — É a união de Win e Gene, vitória e herança. — E o que é a base dessa vitória? — O conhecimento — respondo. Seguindo o caminho, o semáforo fecha. Parados, continuamos o diálogo, enquanto faróis rasgam a avenida à nossa frente, iluminando destinos de apressados.

O Sr. Carlos questiona: — Como surge o conhecimento? — É uma dádiva ancestral. — Certamente, Marcos, “A única herança real”, como nos ensina a Logosofia. Os painéis de LED do caminho brilham multicoloridos, um legado de porções de saber desbravadas por gigantes. Clara observa um anúncio em um deles e comenta: — Olhem esses painéis, quanta tecnologia. — Verdade, Clara. — Concordo e acrescento: — Quando cursei engenharia, demorei para entender a ciência da microeletrônica que herdamos. — Na nossa época, não existia isso, as primeiras televisões eram caras e monocromáticas — observa Dona Eunice, olhando com ternura para o velho esposo. Saindo da avenida movimentada, seguimos para outro bairro. As cores eletrônicas ficam menos frequentes e o trânsito mais calmo. Quando passamos por uma loja, Dona Eunice comenta: — Que interessante o reclame. Acima da vitrine, a foto enorme de um bebê engatinhando com a frase: “Alô, bebê!”. A simplicidade do anúncio contrasta com a sofisticação dos painéis eletrônicos que ficaram para trás. Algo naquela imagem toca os quatro — talvez a pureza ancestral, anterior à tecnologia.

O impacto da imagem do bebê ainda está em minha retina, quando duas bicicletas passam tranquilas. — Levamos alguns meses para aprender, o bebê que engatinha, os primeiros passos, andar de bicicleta. — Muito disso está em nosso código genético. — Ressalta o Sr. Carlos. — Eu não aprendi a dirigir automóvel — completa Dona Eunice. — A genética é importante, mas a evolução moral precisa do componente cultural — continua o Sr. Carlos. — Concordo — digo. — Para isso, estamos estudando a cada dia. No horizonte, a lua em quarto crescente iluminava a noite. — Gosto de estudar sobre os astros, eles me dão uma perspectiva de um horizonte infinito. Após uma pausa, contemplando o instante, digo: — Apesar disso, não acredito que viveremos outras vidas. O Sr. Carlos pergunta: — Se não teremos outras vidas, para quê seremos melhores? Eu respondo: — Devemos evoluir para deixar um legado para as gerações futuras. Clara discorda: — Eu acho que pode sim haver outras oportunidades. — Tudo bem, o que importa é que concordamos em deixar uma herança real, o conhecimento. A rua da fundação se aproxima, as lojas dão lugar a sobrados modestos. Num deles, nos espera aquele alugado para os nossos estudos.

Mais alguns minutos, estaciono nas proximidades da fundação. Uma pequena placa iluminada destacava o lugar, ao centro o logotipo do sol com raios em polígonos estrelados de 36 vértices. Penso que o universo, um dia, terá seu fim, mas cultivo o pensamento de que o conhecimento sobreviverá à máxima entropia. Porque a beleza não está na vida sem fim e sim no renascimento constante do saber em infinitas cosmogonias.


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