Wingene

José Eugênio

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Crônicas 2

Do barulho ao canto

As gotas da chuva recente ainda pingam, o cheiro inconfundível de terra molhada povoa meu olfato, disparando memórias de chuvas na roça. Minha vida corrida na cidade é traçada na moto, correndo entre automóveis. O trânsito tranquilo da manhã ainda permite sentir o aroma da chuva. Mais tarde, o cheiro da gasolina povoará minhas narinas, a dura vida desviando os caminhos repletos de grandes veículos. Em cada viagem, a frágil motocicleta transporta os desejos, desafio constante no movimento desvairado.

O mau tempo piora o trânsito, tortura que afeta a todos, mas é mais cruel com o séquito de motoqueiros. O asfalto molhado, o macacão encharcado. Preocupação com a entrega, que precisa estar a salvo na caixa traseira. Estará bem vedada? Resistirá a esse dilúvio? Serão muitas encomendas. As primeiras pagarão o combustível, no final o resultado do dia será parco. Pequenas migalhas a alimentar formiguinhas na metrópole fria.

Na velocidade do motor, encontro o primeiro destino. Um prédio elegante, de gente granfina. Estaciono por perto, retiro a pequena caixa, envolvo-a nos braços. Correndo na chuva, chego à portaria. Atencioso, o moço me atende, já sabendo da entrega. Pergunta o código, libera a entrada. Pacote entregue, tarefa cumprida. A primeira missão matinal no dia que apenas começara. Dezenas de vezes, milhares de portas. Nem todas são tão simples. Algumas vezes, o atendimento é precário, minutos perdidos, menos renda no dia.

Esperando em uma porta, no meio do dia, ansiava pela rapidez. De repente, uma pausa no barulho do tráfego. Na rua sossegada com árvores frondosas, avisto a melodia de um papa-moscas. Seu canto se misturou com periquitos que se aninhavam em outra árvore. A portaria se abre, a pausa termina. Volto à rotina, dobrando esquinas. Nesse interlúdio alado, minha alma se tocou. Pensei como era escravo das duas rodas e da pressa. Recordei-me de um amigo que indicara um curso. Decidi mudar o rumo, aprender outro ofício.

Vendi minha moto para o curso pagar. Seis meses de esforço para aprender a programar. No início, era difícil. Catava as letras no teclado desafiador. Os códigos eram fracos, loops infinitos e erros desanimavam. Mas as aulas eram ótimas, bem como o professor. Que, com paciência, ensinava com generosidade. Enquanto aprendia, pude sentir que era minha vocação. Comprei um computador usado, comecei a praticar. Em pouco tempo, o teclar fluía como música.

Passando os dias em casa e estudando à noite, a rotina era outra. Da minha janela, ouvia os periquitos em algazarra todas as manhãs, lembrando daquele dia que mudou meu destino. Estudei com afinco, me tornei um programador. Consegui um bom emprego.

Agora as trilhas não são mais em duas rodas, mas tecidas pelos dedos ágeis. Os sonhos são entregues nos pacotes digitais, que ajudam pessoas, transformam rotinas. Meus clientes são gratos pelas soluções que dou — ainda formiguinha, mas feliz por quem sou. Na música das teclas, o barulho do trânsito se dissipou.


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